sexta-feira, 3 de março de 2017

Realidade e poesia


Cães latindo
Homens trabalhando
Furiosas máquinas que gritam e rosnam
A realidade morde o pé do poeta
Em meio à balbúrdia
Do dia a dia
Disposta a derreter
Versos que imploram
E que ele esculpia

Tem o poeta o direito
De fugir e se ausentar?
De restar em seu leito perfeito
Proteger-se do mundo a desabar?
Como se a realidade fosse um defeito
Levar a vida a sonhar?

O poeta sabe
Sempre haverá algo
Que o oprima
Imposições da sociedade
Entregam ao poeta
Meia verdade, meia rima
Realidade distorcida
Página já preenchida
Mal lida e relida
Mas, se ele repara bem
Lê com atenção
E vê
O poder a foder
O povo sem tesão
A ausência do poeta
Pode não ser fuga
Reescrever a página que o subjuga
É tomada de posição

Realidade inventada
Ou
Realidade real
A escolha é do poeta
Não o leve a mal
Como quiser
Ou puder
Depende da escolha
Da necessidade
Do clima
Ou do que exige a rima

O poeta pertence ao mundo que o cerca
Mas gosta de se esconder
Fugir para universos
Mais silenciosos
Mais amorosos
Que atraiam inspiradas musas
Sempre tímidas e reclusas
Teme o poeta que a realidade
Tão ruidosa, tão raivosa
Só atraia a medusa
E suas górgonas irmãs
Que transformem versos em pedra
Triste poesia obtusa
De rimas malsãs

Meu bom poeta não tema
Na realidade serpenteia o espanto
Matéria-mãe do poema
Capture-o
Em uma página em branco
Decore-o com um tanto
De real ou de encanto

A vida transborda versos
Que afogam
O poeta em agonia
A realidade
Esta cadela vadia
Rosna, late e morde poesia
Na primeira notícia do dia

            (03/03/17)



quinta-feira, 2 de março de 2017

Cores do paraíso perdido


Cada animal
Traz seu próprio mundo
No olhar
Essa é uma conclusão
Mais física e biológica
Do que filosófica

Nós humanos
Por exemplo
Vemos coisas belas
E terríveis
É o mundo que nos cabe
Mas não é o mundo inteiro
É a metade de um copo meio cheio

A natureza e as cores
De Matisse, Van Gogh
E de Maria Condado
Não são o mundo
São mais que o mundo
São desejos e memórias
São menos que o mundo
Porque nunca o saberemos

Cores são frequências de ondas
O mundo não é o mundo
Como o vemos
Apenas é o mundo que vemos
E dele concluímos
Uma representação
Como fazem
Com artísticas intenções
Matisse, Van Gogh
E Maria Condado

E as cores que não vemos?
E os sons que não ouvimos?
As partículas que nos atravessam
Sem sequer sentirmos?
O que nos trazem?
De que mundo são
Senão deste que vivemos
Mas não o sabemos?

Você
Que lê este poema
Sabe do que ele é feito?
Que partículas
Físicas, filosóficas e metafóricas
O compõem?
De que mundo ele vem?
De que mundo vêm você e o poeta?

Talvez para nós
Que nos encontramos neste poema
Ou nas telas
De Matisse, Van Gogh
Ou Maria Condado
Não importe o mundo
De onde as coisas vêm

Se nosso mundo
Não é o que sonhamos
Nós o representamos
Nós nos representamos
Em mundos tão estranhos

Se de fora ou de dentro
Caídos de paraísos perdidos
Não importa de quais antros
Próximos estaremos
Se acreditarmos
Que vida e arte
São encontros
Diferentes frequências de ondas
Compondo a mesma pintura
A nos encantar
Mesmo que cada qual
Traga seu próprio mundo
No olhar

            (02/03/17)


Obra de Maria Condado, no livro Hortus

quarta-feira, 1 de março de 2017

A vida em streaming


No princípio era a fala
E a fala era Deus
Nela estava a vida
E a vida era a luz dos homens

A fala se fez escrita
A escrita caminhou entre nós
E se fez impressa
E a fala impressa
Agravou os pecados do mundo

Então o homem criou a máquina
Que capturava paisagens e pessoas
E disse “Vinde e Vede”
Sua imagem e semelhança

O homem não parou
O escrito ganha a fala novamente
Agora transmitida a longas distâncias
A longa fala não bastava
A imagem capturada
Antes estática
Ganha movimento
Primeiro em quadros por segundo
Depois viaja pelo espaço por todo o mundo
Para estacionar em uma tela
Dentro de nossas casas

Disse-nos o homem, sem verdade:
“Daqui em diante vereis o céu aberto
E os anjos de Deus
Subindo e descendo
Sobre o Filho do homem”
E a tela subiu ao altar
Deusa no lar
Bem-aventurados aqueles que a vêem

Porém
Aquela tela foi o princípio
Não o fim
Outras telas vieram
Para lhe fazer concorrência
Tela contra tela
Feito irmão contra irmão
As que surgiam eram mais conectadas
Formavam uma grande teia planetária
Unindo mais que sete igrejas

As novas telas sobem ao trono
A elas foram dadas
“Graças, e honra, e glória,
E poder para todo o sempre”
Quem cai nessa teia
Dificilmente escapa
Quem não quer ser pego
Que não se aproxime
A vida vai ao extremo
Do streaming

As sete pragas
Dos sete anjos
A um clique de distância
“Nem sol
Nem calma alguma
Cairá sobre eles”
Desconectar é doloroso
Tudo é transmitido
Do primeiro respiro
Ao último gozo
Se alguém tem ouvidos, ouça
A corrente é forte
As telas nos acompanharão
Da fecundação até a pós-morte

            (01/03/17)


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Uber X Táxi


Terezinha chamou um Uber
Para no táxi economizar
O motorista não sabia o caminho
Fez Terezinha se atrasar

Paulo foi de Uber ao aeroporto
Por pouco não saiu de lá morto
Taxistas fizeram uma barafunda
Paulo levou um chute na bunda

Amauri era jogador de futebol
Foi demitido porque perdeu um gol
Pelo Uber Amauri foi contratado
Agora só ganha a vida sentado

Quando se viram no Portão
Foi amor à primeira vista
De Uber, João ganhava o pão
Berenice era uma gatinha taxista
Com medo ficou Berenice
Mas João a acalmou e disse:
“Há amor até na bandeira 2
O resto a gente vê depois”

            (24/02/17)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O estado da arte


No fosso da orquestra
Há o silêncio
Instrumentos em guardamento
A bailarina está imóvel
Não se ouvem aplausos
Há uma densa perplexidade no ar
Mais uma vez
Tentaram a arte matar

Para que serve a arte?
Esse não-objeto?

Saberá quem capturar o som
Com as mãos ou a voz
Quem esculpir a bailarina
No meio do giro
Quem decifrar a palavra
Entre a mente e o papel
A pintura
Entre a tela e o pincel

A burocracia inveja
O estado da arte
Que não tem dono
Ignora leis e regras
Sempre renovada
Reinventada

A arte é rebelde disciplina
Delírio engajado
É amar, armar e desarmar
Desamar e desalmar
Criteriosa desobediência
Rebeldia sem calças
É diversão e penitência
A arte é travessura
Amassa antigos e novos papéis
E os atira
Na cabeça de burocratas
Tecnocratas
Bedéis

Estes
Num revide repressivo
Impõem mais regras
Mais leis
Mais papéis
Tentam
Imobilizar a bailarina
Queimar os livros
Calar orquestras e menestréis

Pobre burocrata
Pensa que a arte é objeto
Quer feri-la e até destruí-la
O burocrata não sabe
Que a arte é como a vida
É feita de feridas
Que sangram as palavras que vão nos livros
Que amplificam o som da orquestra
Que moldam o movimento da bailarina

A arte é feita
Dos antônimos e seus sinônimos
Do amor
Do desejo
Do ódio
Do medo
E da imensa falta de todos eles

O estado da arte
É um tanto masoquista
Afinal
Sofrer é rotineiro
Pobre é o artista
Que só pensa no dinheiro

            (23/02/17)

Orquestra Sinfônica do Paraná - Foto de Karin van der Broocke


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

A menina e a recessão


Contra a recessão
A comida da menina
Banco já comeu

“Criança come pouco
Banco tem barriga grande”
Jura o presidente

“Agora já passou
A recessão acabou”
Diz seu ministro

O banco engordou
Economia cresceu
Menina morreu

            (22/02/2017)



terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Sherazade anabolizada


Por mil e uma noites
Sherazade encantou Shariar
Inventando histórias
Escapou da morte
Que lhe esperava
A cada amanhecer

Por dois mil e quinhentos dias
Um político de um povoado (que se diz República)
Tal qual uma Sherazade anabolizada
Muitas histórias tem contado
A amigos togados

Ele foi pego
Povoando de fantasmas
Uma casa de leis
E forrando os bolsos
Mais de uma vez

Foi acusado
Mas
Enquanto o julgamento
Era novamente adiado
Foi reeleito deputado

Decida
Você que me lê
Entre mil e uma noites
E dois mil e quinhentos dias

Qual das histórias parece mais fantasia?

           (21/02/17)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A fábrica sem sangue do Butantan


Em São Paulo há muitas fábricas
Em todas corre muito sangue
Nas veias dos trabalhadores
Mas em São Paulo há uma fábrica
Que precisa
Mas não tem sangue
Uma fábrica que produziria curas
Não estivesse parada
Por falta de sangue
E de planejamento

Que se tire o sangue dos políticos
Esses vampiros
Que poluem o mundo com suas fábricas de mentiras
Pelas chaminés lançam promessas ao vento
Enquanto deixam morrer uma fábrica de curas

O governador que prometeu a fábrica
Há muitos anos
Hoje é ministro de estado
Em qual de seus governos estará a culpa?
Que desculpas ele fabricará?

Sem sangue, não há fábrica
Sem fábrica, não há remédio
Sem remédio, não há cura
Sem cura, há só sangue
Derramado
Do doente
Do povo enganado

          (20/02/17)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Um dia sem imigrantes


Jamais
Na história da humanidade
Houve um dia sem imigrantes

Se houvesse esse dia
Colombo
Jamais descobriria
Cabral
Não chegaria
Só haveria portugueses
Em Portugal
Ingleses
Nunca atravessariam o canal
Napoleão
Seria só mais um
Doente mental

Sem imigrantes
Seríamos todos imóveis
Seríamos todos africanos
Mas o Homem migra
La donna è mobile

Imagine
Um mundo sem imigrantes
Impossível

Imagine
Destruir tudo o que foi feito
Por imigrantes
Impossível

Imagine
Qual de nós
Não descende de imigrantes
Impossível

Imagine
Se a humanidade imigrante
Fosse exilada
De volta às árvores

Hoje
Muros são peneiras
Porém
É muito fácil
Acabar com os imigrantes
Basta desmarcar fronteiras

            (17/02/17)