terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O sonho de Coretta

Coretta have a dream
Qual seria o sonho secreto de Coretta?

Por trás, pela frente, por cima, por baixo, ao lado
Grandes mulheres
Não estão só por trás de grandes homens

Coretta sobreviveu a Martin Luther
Com 4 filhos
Carregou tristeza e lenda
Colheu a vida que dava
Em meio a um legado
Que ela cultivou e frutificou

Coretta não odiou
Coretta não perdoou
Coretta lutou
Pela justiça e pela liberdade
Contra a desumanização
A desumanização é o objetivo do preconceito
Coretta disse:
“...a meta (do preconceito) é desumanizar um grupo específico de pessoas afim de tirar-lhes a humanidade, tirar-lhes a dignidade e o seu senso de ser gente”

Para casar, Coretta impôs condição
O pastor retirou da cerimônia
O juramento de obediência ao marido
Para a liberdade e a Justiça
Coretta não impôs condição
Coretta sabia
A injustiça é sempre a ameaça
Coretta sabia
A injustiça e o preconceito
Deixam um legado de horror
Nos desumanizam
Sábia Coretta


            (31/01/17)


segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Assassinatos em São Paulo

A bala que cruza o ar
Não carrega o perdão
A lâmina fria
Penetra a carne quente
Sem clemência

É de se pensar
Em qual suspiro
A vida para
Suspensa
Entre a alegria do retorno
E a entrada em uma conta fatal
Feita de números
O mundo da estatística oficial

É de se pensar
No índice que mede a perda
Na quantidade de desespero e dor
Dos que sobrevivem
No quanto de ausência eles podem carregar
Os parentes, amigos, amores
No que uma vida que desapareceu
Pode fazer por todos

São Paulo tem 645 municípios
Em 2016, foram 3.674 vítimas de homicídios
Só em 18 cidades nunca nenhuma pessoa foi assassinada
É de se pensar
Em quantos assassinatos cabem em uma cidade
Em quanta maldade em cada um deles
Em como comparar uma estatística e uma dor

É de se pensar
Que há uma bala no ar
Viajando
E há uma estatística também suspensa
Esperando
Para nos transformar em número
Sem perdão nem clemência

            (30/01/17)



sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Outros cantos

As Américas têm muitos cantos
Que encantam o sabiá

O mundo tem muitos cantos
E eu nunca fui para lá

Cantos de terras distantes
Convidando a explorar

Cantos aqui tão perto
Que se deixam apalpar

Uns cantos se fecham, outros se expulsam
Alguns explodem o próprio lar

Todos cantos humanos, todos certos
Sempre prontos a errar

Qualquer canto em qualquer canto
É tudo poeira estelar

Mas há um canto (que lugar é esse?)
Lá, nunca se deixa de guerrear

Uma guerra quente, instigante
Poucas mortes a velar

Um canto que não se sabe
Nem adianta procurar

Encontra-se perto e longe
Encontra-se em qualquer lugar

Toda noite a guerra para
Para de dia recomeçar

Se a noite é dia claro
É a guerra a sonambular

Chega a hora para todo mundo
Que toda guerra vai parar

Neste dia um outro canto
Restará para descansar

Exércitos em miniatura
Continuarão a trabalhar

Transformando o velho canto
Em pó de poeira estelar

Não penses que é derrota
Que o que estava não mais vai estar

O que escapou daquela guerra
E um dia encontrou o ar

É obra de uma vida inteira
Que ainda muitos vão lembrar

Para tua sorte
Ou azar


            (27/01/17)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Mrs. Anjo da Casa

Mate os anjos que te habitam
Ensinou Virginia
Sem direito a ressurreição
Atenção!
Nem todos os anjos devem morrer
Apenas os que te habitam
Necessitas das asas

Anjos não têm sexo
Porém
Habitam mais as mulheres
Muito culpa dos homens
Que têm interior pequeno
E jogam suas tralhas
Para dentro delas
Foi assim
É assim
Será?

Sem anjos e com asas
Virginia encontra Clarice
Clarisse liberta Macabéa
Livres para amar
E criar
E viver
Nasce uma nova mulher
Que sempre existiu

            (26/01/17)



quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O rei está bem vestido

Todo mundo mente
Menos o presidente

Homem santo venerado
Jamais será enganado

As mulheres sempre o amarão
Quando ele lhes passar a mão

As crianças copiam o seu estilo
Querem o cabelo rabo de esquilo

A cor laranja
Combina com a franja

Os estrangeiros temem o maioral
Mas, no país deles, querem um igual

Os homens invejam seu poder
E juram sempre obedecer

Tão lindo, tão forte, tão franco
O país e a casa cada vez mais brancos

No Twitter, é esgrimista
Terror dos comentaristas

Só a imprensa, essa malvada
Que lhe é malcriada

Questiona sua interpretação da verdade
Sua potência e sua vaidade

Criaram até um aplicativo do mal
Para analisar seus posts na mídia social

Mas suas belas palavras o presidente não desdirá
Mil vezes, se necessário, as repetirá

“Ao contrário da imprensa” – ele diz
“O povo me quer feliz”

“Daqui ninguém me tira”
“Não despertem a minha ira”

Todo mundo mente
Menos o presidente

Ninguém vê maldade
Numa pequena pós-verdade

            (25/01/2017)

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Adeus Europa

Theresa não pode sair assim
No meio da festa
Refugiar-se do carinho
Em insular solidão
Deixar a Europa agora
É como deixar um amor
Antes que acabe
Medo das multidões
Síndrome do pânico
Síndrome das multidões
Medo do pânico
O inferno
Que ela pensa vir com os outros
Esse inferno é interno
Acalme-se Theresa
Aguarde a colheita de verão
Andaremos pelos campos e bosques
Descalços feito uma Carmelita
Abertos à vida
Ao outro
Que nos estende a mão
Não tema a menina que se aproxima
Olhe bem
Você se reconhecerá nela
Tome-a nos braços
É sua filha
Ela a ensinará
A amar novamente

        (24/01/17)


segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A privada de madame

A madame passa um perfume
De 600 euros
Penteia-se com uma escova
De 100 dólares
Escolhe uma música easy
E no mesmo controle touchscreen
Regula a temperatura do acento
Para 29 graus Celsius
Ergue a camisola
De mil euros
Abaixa a calcinha
De 200 dólares
E senta-se confortavelmente
No vaso sanitário japonês
De 5 mil dólares
Pega a Veja no porta-revistas
De 500 reais
E dá aquela boa cagada
Enquanto folheia 
Vê fotos, títulos e frases em destaque
No fim
Recebe os jatos quentes e massageadores
Depois o vento secante
Termina de limpar
Com um papel higiênico personalizado
De 25 reais cada rolo
O papel está quase no fim
Tem de trocar
Vai pedir para a empregada
De mil reais por mês

            (23/10/17)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Conspiração no Twitter

A atriz
Hoje com 76 anos
Se desnuda linda e provocante
Em antigas fotos

Nesta, que a apresenta na chamada
Do site Old Pics Archive
Ela traja
Uma calça vermelha apertada
De cós mais ou menos baixo
Dois ou três dedos
Abaixo da linha do umbigo
Mini camisa xadrez
Vermelha e branca
Amarrada imediatamente
Abaixo dos seios
Encerra generosa fenda
Delicioso cânion
Do decote

A atriz parece feliz
Sorri
O queixo suavemente projetado para a frente
Os cabelos escuros
Num corte abaixo dos ombros
Têm movimento
O antebraço esquerdo
Sobe ao lado do corpo
E faz um V
O braço direito
Está um pouco para trás
A mão direita levemente fechada
A atriz parece dançar
Ao som de música alegre

Esta
Da chamada
Do site Old Pics Archive
É uma de 12 fotos
Nesta
A atriz não parece fazer pose
Parece vida real
Pega de surpresa
Dançando
Em uma festa
Entre amigos
Alegria tão casual
Quanto um encontro na rua

Esta
Da chamada
Do site Old Pics Archive
É uma das fotos
Em que ela está
Com mais roupa
E menos pose
A única em que
Parece realmente feliz
Despreocupada

Raquel Welch parece nem ligar
Ou nem saber
Que nos posts que a cercam
Na timeline
Só se fale
Na trágica e surpreendente morte
Do supremo ministro juiz da Lava Jato
Que julgava atos indecentes
De políticos influentes

Pode ser tudo uma farsa
Uma conspiração
Pode ser que tudo
Tenha sido feito de propósito
Para enganar o povo
Pode ser tudo pose
Da Raquel


            (20/01/17)



quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Terremoto na Itália

A rua ondula feito água
Vasos saltam das sacadas
Coloridos pássaros suicidas
Janelas vibram trágica percussão
O asfalto craquela-se em tela de Mondrian
O cérebro é tigela de gelatina
Agitada por criança
Não há ordem no formigueiro sublevado
Pessoas andam para todos os lados
Se esbarram, tropeçam, caem
Algumas gritam, outras choram

Em meio ao caos
Penso em você
Maldito terremoto
Chacoalha a vida da gente
Mistura passado e presente
De tudo o que pode desabar
Uma lembrança me esmaga

Agora tudo passou
O mundo refaz-se sólido
Foi só o susto
Todos estão ilesos
Puxo o telefone
Procuro na tela
O abalo do teu sorriso
Mil graus na escala Richter
Continuo a tremer

Maldito terremoto

            18/01/17

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Por dentro de Alcaçuz

A raiz de alcaçuz é adocicada
O Presídio de Alcaçuz dá frutos amargos

O jornal anuncia fotos de dentro do presídio
Ali, 26 pessoas foram decapitadas
Não há sangue nas fotos
Não há presos vivos ou mortos
Tudo foi lavado
Mas esses olhos
Essas paredes
Nunca mais restarão livres e limpos
Mesmo na ausência
Permanece a evidência
A sujar fotos e corredores
De uma terrível violência
Há um horror impregnado
Na solitária
Na sala de aula
Nas marmitas
Na cozinha
Nas celas
Nas latrinas
Nas retinas
Há sujeira na consciência

“Está com pena, leva para casa”
Dizem os que condenam os direitos humanos
Para outros humanos

Esquecem que o horror
Escapa do presídio
Invade nossas casas e vidas
A cada desumanidade

A raiz do alcaçuz é adocicada
O Presídio de Alcaçuz dá frutos amargos

            17/01/17

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

David com problemas no tornozelo

Aquiles atravessa os séculos
Chamado por David de Michelângelo
Troia cumprimenta Florença
Dois heróis guerreiros compartilham
Seus problemas de tornozelo

“Nunca deveria ter saído de Gate,
De junto de minhas ovelhas”
Queixa-se o homem de mármore
Antes mesmo de um boa tarde

“Não digas disparate
És belo feito um deus
És grande feito um gigante
Maior que o filisteu
Arrogante que desafiaste”
Rebate o companheiro de Ulisses
Que à pedra falante indaga:

“Aqui estou. Por que me convocaste?”

“Preciso de alguém
Que tenha mais experiência
Nesta minha, digamos, certa carência
Tu és o deus do luto e da luta
De luta, eu tenho noção
Quero conselhos mais básicos
À altura desse calcanhar
Que me sustenta ao chão”

Aquiles circunda a estátua
Presta atenção nas ranhuras
Que ao mármore estão a corroer
Compreende então as agruras
Da bela figura a sofrer

“Sinto ter de dizê-lo
A quem já deveria sabê-lo
Mesmo ao homem mais belo
Virá o tempo a comê-lo
Mesmo o guerreiro mais alto
Virá ao chão num sobressalto
Derrotado e humilhado
Por um adversário a quem considerou
Inferior e menos preparado
Pelo que eu vivi e agora vi
Não há deus que te salve,
Meu caro David
Mas não perca a fé
Reze, humilde, pela ciência
Para que te mantenhas em pé”


           (16/01/17)